sábado, 16 de julho de 2016

MIRÓ de Muribeca - Poeta


PRIMEIRA SEMANA 
 Miró da Muribeca completa 56 anos no dia 6 de agosto. É poeta. Mas prefere se dizer cronista. “A minha poesia, a minha crônica, é exatamente a rua.” Afirma que não faz ficção e suas narrativas são encontradas nas esquinas, nos ônibus, nas noites, nas alcovas ou no passado. Mais que a rua, a poesia/crônica de Miró é a vida eternamente à deriva. Das cidades e das pessoas. Nosso primeiro encontro, em uma tarde de maio, ocorreu no Largo de Santa Cruz, centro do Recife. Sentamos em um bar com pássaros engaiolados, e a alguns metros um casal fuma maconha na praça. Para chegar ao Largo, é preciso atravessar a multidão da Av. Conde da Boa Vista, artéria vital de uma cidade já obstruída pela profusão de cheiros ruins, buracos nas calçadas e por onde o patrimônio histórico perde espaço para prédios feitos sob qualquer arquitetura. Quando não há o som das buzinas ou dos vendedores de várias coisas, há o carrinho de som tocando alto Lionel Ritchie (música: Stuck on you). Melhor. Ofereço água, mas Miró, que chega pontualmente, pede conhaque de alcatrão. Para além de poeta ou cronista, ele é símbolo de uma geração de artistas alternativos do Recife, que começou a publicar a partir dos anos 1980. Artistas que, por viverem o lado B da cidade, encarnam no próprio corpo as agruras das suas urbes com versos fortes associados a uma récita impactante. Com 15 livros lançados, tem se consolidado com um dos mais inventivos poetas em atividade no país. “Sempre que Miró vem à Balada é ovacionado”, aponta o escritor Marcelino Freire, organizador do festival paulistano Balada Literária. “Já recitou para Antonio Cândido, Adélia Prado, Augusto de Campos. Momento histórico foi Miró, na Balada do ano passado, ter encontrado Ignácio de Loyola Brandão. Miró tirou do bolso um poema que fez ali, em homenagem ao Loyola, e leu, para emoção geral do público”, lembra Marcelino. Em 2015, foi um dos homenageados da Bienal do Livro de Pernambuco. Seu último livro, aDeus (2015, Mariposa Cartonera), vendeu cerca de 3 mil exemplares em menos de um ano – um número de best-seller em se tratando de poesia e de um país em que as tiragens por edição de grandes editoras muitas vezes nem chegam a isso. “Normalmente, as pessoas procuram direto (o poeta), ele anda com as obras. Interessante que as vendas on-line representam uma parcela muito pequena, o que reforça o carisma do autor. Também o livro sempre é vendido nos eventos que participamos, mas numa quantidade menor que a venda direta dele”, afirma Wellington de Melo, editor e organizador da obra. No documentário Onde estará a Norma (2007, dir. Bárbara Cristina, Jacqueline Granja e Patrícia Gomes), Miró diz trabalhar com fotografias urbanas. Pega o lado mais caótico e sacana da cidade. “Nesse sentido, ela (a poesia) é verossímil”, explica. Aproveita as calçadas, a arquitetura árida, os cheiros e buracos do Recife como mote para versejar. Quando essa inspiração não vem de forma seca e imediata – como em “Por trás de um ônibus lotado / E uma cadeira vazia /Há sempre um grande vômito” –, vem com evidente lirismo: “Quatro horas / Quatro ônibus levando vinte e quatro pessoas / Tristonhas e solitárias / Quatro horas e um minuto / Acendi um cigarro e a cidade pegou fogo. / Cinco horas / Cinco soldados espancando cinco pivetes / Filhos sem pai / E órfãos de pão / Cinco horas e um minuto / Urinei na ponte e inundei a cidade / Seis horas / O Recife reza / E eu voando pra ver Maria.” Não apenas o Recife é motivo poético: “Quantos sacos di cimento / há em ti São Paulo? / Quiçá meu coração não fique concreto / Alguma coisa acontece? / A elite vai em massa a eletra / Substantivo concreto / Quem lê os campos? / Substantivo abstrato / Náufragos dessa onda / Atenção para o toque di 8 segundos.” Depois de ele falar sobre sua mudança de Muribeca, subúrbio da Região Metropolitana do Recife onde morou, para o centro da capital, resolvemos dar uma volta e seguir a um parque. Mas devagar, porque o poeta, já ébrio, fica tonto se andarmos rápido. No caminho, é cumprimentado por amigos e colegas de bar. “Sou popular”, diz, resumindo o óbvio. Passa a falar sobre o “alegrismo”. “Alegrista é quem bota para rir e pensar. O alegrista é o que diz na sua cara aquilo que você não quer escutar”, explica, tomando um gole de conhaque”. E emenda: “a minha poesia, ela tanto faz rir quanto chorar. Ela é verossímil. Ela não alivia. Não espere de mim algo tão leve”. No dia em que completa 56, Miró lança O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera) dentro da programação da Feira do Livro do Vale do São Francisco, em Petrolina (PE). “O tom desse livro novo é um desenvolvimento das reflexões de um Miró mais maduro, que refletem também uma nova espacialidade, com a mudança dele para o Centro, que curiosamente provocaram mais um lirismo existencial que a crítica social. Ainda está o humor, em alguns momentos, o que torna o tom de O penúltimo olhar... menos grave que a obra anterior (aDeus, permeada por tons existenciais e de solidão), mas sem abandonar esse olhar sobre o cotidiano, sobre a própria solidão”, explica Wellington de Melo. É o seu décimo sexto livro. Antes dele vieram Quem descobriu o azul anil? (1985); São Paulo é fogo (1987); Ilusão de ética (1995); Entrando para fora, saindo para dentro (1997); Flagrante deleito (1998); Quebra à direita, segue à esquerda e vai em frente (1999); São Paulo eu te amo mesmo andando de ônibus (2000); Poemas para sentir tesão ou não (2002); Pra não dizer que não falei de flúor (2004); Onde estará Norma? (2006); Tu tás aonde? (2007); Quase crônico (2010); dizCrição (2012); Miró até agora (2013, antologia); e aDeus. Exceto o último, os demais foram publicados de forma independente e são difíceis de achar, mesmo em sebos. Ainda há um livro pronto, provavelmente a ser lançado de forma independente: Não terás um centavo de minha alma. E Miró até agora ganha reedição revisada ainda este ano pela Cepe Editora, organizada por Wellington. SEGUNDA SEMANA Mais uma tarde de maio e encontro Miró, dessa vez sóbrio, no Bar Mamulengo, um dos mais conhecidos do Recife Antigo, depois do almoço. Começa a explicar que teve um mal-estar na semana passada, com formigamentos na cabeça e dores na área do fígado e no apêndice. “Aí resolvi parar de beber”, disse, empurrando para o lado um copo de suco. Passou a contar sobre um mal-estar que teve no ano passado. Ainda morando na Muribeca, ele acorda às 5h da manhã e vomita algo verde. “E eu estava sozinho dentro daquele prédio – na Muribeca não tem mais ninguém –, eu bebia de 6h30 da manhã”, lembra. O crescimento do bairro ocorreu a partir da criação de um habitacional popular nos anos 1980. Há sete anos, pelo menos, as moradias são desapropriadas pelo governo sob o argumento de realizar obras (como canais para saneamento básico) ou de risco de queda das edificações. Desde então, houve grande debandada de famílias. Na época (julho de 2015), o poeta acordava com o barulho da porta corrediça da padaria abrindo (“Muribeca é um silêncio”, explica). Depois tomava banho, descia, dava uma volta nas redondezas e, quando chegava à padaria, a atendente estava com uma lata de cerveja no balcão esperando. Bebia lá até às 8h, quando rumava para o bar mais próximo. Seguia assim até às 15h. Diariamente. “Eu comia pouco e o corpo reclamou”, diz. Caído no chão, próximo ao vômito verde, Miró pegou um palito para só assim conseguir discar no celular o número do escritor Wilson Freire, também médico e diretor do documentário Miró: Preto, Pobre, Poeta e Periférico (2008). Enquanto Freire tentava uma vaga no Hospital Oswaldo Cruz, no Centro do Recife, a poeta Cida Pedrosa mobilizou um carro para resgatá-lo. “Ele delirava. Não sabia se estava vivendo um sonho, se estava na realidade. Foi um período difícil. Mas, uma semana depois, ele estava bem, tinha ganho peso. No período que passou internado, acho que 15 dias ou um pouco mais, ele ganhou mais de 15 kg”, conta Wilson Freire. Foi nesse período que veio o nome para o próximo livro. O médico o advertiu sobre possíveis lapsos de memória e pediu que ele sempre desse o penúltimo olhar sobre as coisas antes de fazer algo ou antes de ir embora. O suco ficou quente na mesa do Mamulengo enquanto Miró falava. Lembrou o seu último livro, aDeus, lançado em seu aniversário do ano passado, durante um período em que se manteve sóbrio. Foram cinco meses sem beber. “Fiquei num estado de beleza comigo mesmo. Podia sentar com um cara e ele tomar um litro na minha frente que não dava vontade”. Nesse tempo, vieram viagens para participar de eventos literários e a homenagem na Bienal do Livro. Todas as suas declamações eram lotadas. Saía sempre ovacionado. Miró não lembra se era véspera de Natal ou dia 25. Estava sozinho na pensão e concluiu que não seria problema tomar dois copos de cerveja. “Para quem mora (em pensão), se não tiver uma família ele come até merda para se distrair”, diz. E seguiu para o bar, o mesmo onde nos encontramos na semana anterior (“acho que ele [o dono do bar] não fecha nem se a mãe morrer”). Lá, encontrou um vizinho completamente alcoolizado. “Ele não bebia há oito anos. Disseram que tomou três copos e capotou. Entendi isso como uma mensagem dos espíritos. Antes de sentar, eles me mostraram o vizinho bêbado. Se ele que está sem beber há oito anos estava assim, imagine eu? Mas ele me chamou para tomar duas. E aí morreu o boi”, conta. De dezembro a maio, bebeu frequentemente, mas sempre tentando parar. Não é fácil. “Tem recaídas frequentes. E, como Miró é uma pessoa sem estrutura familiar – não tem pai, mãe ou filhos –, ele sente a solidão. Combater o alcoolismo sem uma família é difícil”, diz Wilson Freire. Pondero que Miró tem amigos muito presentes. “O problema é que, quando o camarada está ‘bem’, todo mundo vai para sua casa, para suas famílias. E ele vai para a pensão sozinho, né? Olha para um canto, para outro e não tem ninguém”, pontua o escritor. Depois de muito falar, o poeta se levanta para uma rápida sessão de fotos. Despedimo-nos. No copo, o suco ficou pela metade. Uma forma didática de entender a figura do poeta alternativo no Recife é o filme Febre do rato (2011, dir. Cláudio Assis). O personagem central, Zizo, é uma síntese de várias figuras que povoam a boemia literária e a memória do Recife: França, Lara, Erickson Luna, Chico Espinhara e o próprio Zizo, além de Miró. É o artista que faz poesia nos bares, reúne pessoas em apresentações públicas geralmente improvisadas e aponta o dedo para as mazelas da urbe. “Essa crítica (à urbe) vem desde Carlos Pena Filho, com o Guia Prático da Cidade do Recife, e João Cabral de Melo Neto, com Cão Sem Plumas. É uma relação amorosa com a cidade. Se a gente ama, a gente denuncia”, pondera Cida Pedrosa. Sobre a poesia feita por essa geração, ela “é corporal, para ser vivenciada. E seus impressos tentam captar essa presença do corpo, através de opções editoriais como a programação visual diferenciada (aproximada da arte sequencial), impressões artesanais e distribuição pessoal. Para esses autores, vale dizer que seu meio de difusão é a performance poética”, escreve André Telles em sua dissertação de Mestrado (UFPE) sobre a interação entre corpo e poesia na obra de Miró. Percebe-se uma influência capital da geração mimeógrafo dos anos 1970 e de Bandeira. Dos primeiros, os ritmos, os trocadilhos: “merece / um / tiro / quem / inventou / a / bala”, diz Miró. Do segundo, o “lirismo não comedido”. Mas, se Bandeira já chega a apontar alguns horrores do cotidiano (como no seu conhecido poema O Bicho), Miró escancara. Um exemplo é o poema Carla: “Conheci Carla catando lata / seus olhos brilhavam / como alumínio ao sol / São Paulo ardia / Num calor de quase quarenta graus / Pisou na lata / como pisam os policiais / nos internos da Febem [...] / Nem tanta polícia / muito menos catadores de lata, / Os olhos de Carla / Nem desse poema precisavam.” Algo que marca diferença entre Miró e os poetas de sua geração é a opção dele, em diversos momentos, por poemas longos. São vários exemplos, nos quais se destacam Confesso que vivi meio século, Onde estará Norma? e Ilusão de Ética. Textos que se aproximam bastante da crônica ou do miniconto. Em se tratando de conteúdo, Miró reflete o cotidiano negro e periférico das grandes cidades brasileiras. Diz ele que, na década de 1980, vinha com um amigo de um festival quando cruzou com dois policiais. Como estavam sorrindo, os policiais pararam e perguntaram “Tá rindo de quê, boy”? “De nada, senhor”. Ao que um dos fardados respondeu: “quem ri da polícia se fode”, e bateu no rosto de Miró. O outro policial tentou apaziguar os ânimos. Perguntou pelos documentos. O agressor quis saber onde o poeta morava. “Ibura” (bairro pobre na zona sul do Recife). “Aí é que vai ser bom mesmo”. Levou os dois jovens para uma rua escura. Tirou o cinturão e começou a agredir o poeta, que fora arrastado pelo policial a outros lugares. Miró diz se sentir estilhaçado até hoje. “Para mim, Miró é uma versão atualizada de Solano Trindade (1908–1974; poeta pernambucano), com esse canto da negritude periférica, da população que navega pelo centro da cidade”, opina Wilson Freire. O artista ainda é autor de versos eróticos, amorosos, existenciais e melancólicos, poesia invisível nos recitais de que participa e que estão, nos seus livros, lado a lado com os “poemas-denúncia”. O erotismo é explícito, com poemas que constroem imagens concretas e cotidianas, sem sutilezas, como em H2Love: “Não tinha mais como esconder / Era o cara da água passar / E ela ficar toda molhada.” Os melancólicos, em geral, vêm associados a temas amorosos – como em Amamos, dedicado a uma ex-namorada: Tecemos fios para / nossos sonhos / mas um dia despencarmos / feito fruta madura num / pomar abandonado”. Os existenciais, que nas primeiras obras vêm a partir de cenas do cotidiano associadas ou não com a solidão: “Certos estranhos / pedaços de rua / Habitam meu olhar. / A solidão sentada / no colo das vovós / novelo de linha, / traçando o tempo / veloz das esquinas”. Nessas vertentes, Miró, mais uma vez, deixa entrever Bandeira, mas percebe-se uma influência de Drummond. “Drummond é o poeta que mais amo”, afirma. “Acho que as pessoas conhecem mais as ‘poesias- denúncia’ de Miró porque é o que ele mais apresenta nos recitais. Talvez porque a poesia de amor seja vista como algo menor, hoje em dia. Mas não é”, opina Cida Pedrosa. TERCEIRA SEMANA Encontramo-nos mais uma vez no Bar Mamulengo e Miró, como sempre, pontual. Naquele dia, estava com uma camisa preta, estampada com uma foto de si junto à mãe, dona Joaquina. Tocamos no nome dela e ele se emociona. Emendamos a falar sobre os processos de criação poética. A conversa avança pouco. Depois de falar sobre morte, ele pede para ir embora. Faz um prato de comida, põe na marmita e seguimos até o táxi. A morte da mãe, em 2012, foi um baque severo para Miró. A família se resumia aos dois, que moraram em vários subúrbios antes de chegar à Muribeca, nos anos 1980. Os pais de Miró – cujo nome de batismo é João Flávio Cordeiro da Silva – se conheceram no Madeira do Rosarinho. Ao livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes (Nektar), do fotógrafo Camilo Soares, dona Joaquina recordou que o homem tinha nove amantes e que, se ela não ficasse com ele, as outras nove moças chegariam junto. Dançavam a noite toda. “O nome dele era João Godofredo. Segundo minha mãe, era casado e gago... talvez por isso eu fale tanto”, brinca o poeta. Ele garante nunca ter visto o pai, mas no livro de Soares é dito que chegou a encontrá-lo duas vezes. Também teve uma irmã, Fátima, que, de acordo com a obra, morreu aos 9 anos vitimada pela tuberculose (Miró diz que ela morreu aos 6 anos em meio a uma crise de asma). “Minha mãe nunca mais pôs um homem dentro de casa”, diz. “Eles tinham uma relação difícil porque havia muito amor, muito foco um no outro. Havia complicações também porque Mirobaldo não é fácil, ele é um cara independente”, lembra Flavão, quadrinista e amigo de Miró há mais de 20 anos. “Mirobaldo” foi o apelido dado pelo artista plástico Maurício Silva ao poeta, ainda nos anos 1980. “Ele morava na Quadra Revoredo, um conjunto de casinhas que ficavam onde hoje é o Hospital Oswaldo Cruz. Eu morava na Rua Dom Vital, bem perto. E jogávamos peladas de rua. Como ele jogava muito, logo o apelidaram de Mirobaldo, um jogador do Santa Cruz. Daí, para ajudar o amigo, sempre tinha um trabalho para ele em nossas casas, afazeres domésticos ou jardinagem”, lembra Silva. Para a construção do Hospital Oswaldo Cruz, houve o despejo de famílias da Quadra Revoredo. Miró e a mãe se mudaram para a Bomba do Hemetério (bairro popular na zona norte do Recife) e depois para o Ibura, antes de ganhar um apartamento no Conjunto Habitacional Muribeca, doado pelo governo do estado. Foi na casa de Silva – frequentada por artistas – que Miró conheceu MPB, poesia e outras formas de arte. Também foi por influência do artista plástico que ele decidiu ser poeta. “Foi ao ler um poema dele. Farda verde, verde, verde (...) ”, recita. Quando decidiu ser poeta, os amigos abreviaram o nome para Miró. “Depois adotou o nome do bairro para onde se mudou, Muribeca”, recorda Maurício Silva. O poeta estudou até o Ensino Médio. Tentou vestibular para jornalismo, sem sucesso. Então, o pai de Maurício Silva conseguiu para ele um emprego como servente na Sudene. Enquanto limpava os banheiros, parava para escrever poemas. Foi descoberto pelo também poeta Wilson Araújo, que trabalhava lá. “Era (ele) alguém cantando acho que Caetano (Veloso) enquanto limpava um banheiro”, lembra Araújo, que o ajudou a publicar poemas em jornais. Naquele ano, 1985, Miró lança seu primeiro livro, Quem descobriu o azul anil?. Largou o emprego e decidiu viver de poesia. Seguiu para o Petrolina, no Sertão, onde tinha um primo distante. Foi para passar um tempo e vender o livro recém-lançado. De lá, para Juazeiro (Bahia) procurar Manuca Almeida, poeta que já tinha visto recitar no Recife. É notável a influência de Manuca no jeito mambembe com que Miró recita poesia. Juntos, foram às rádios para divulgar a obra. “Era um menino normal, todo certinho e arrumadinho, tímido. O livro era assinado ‘João Flávio (Miró)’. Eu disse a ele que o nome tinha que ser apenas Miró”, conta Manuca. Ele explica que a récita dele, absorvida por Miró, consiste em ligar fala e corpo, além de usar “tudo que era ruim em mim como elemento para a minha poesia”. Voz, gestos e, por vezes, a roupa se unem à linguagem popular para dar vida a uma poética em que o corpo vai reverberar os trânsitos e transeuntes da vida desigual e feroz das urbes. Sua forma de reclamar permanece praticamente a mesma, desde que Miró passou a se apresentar publicamente. Então, o que mantém vivo o interesse no trabalho dele? “Ele não é um fenômeno porque recita bem. Se não tivesse uma obra, essa récita, que não é de ator, já teria se exaurido por si só. Não se exaure porque a obra dele é forte e se renova”, ressalta Cida Pedrosa. A obra já virou documentários, HQ, música e há projeto para virar teatro, com o grupo pernambucano Magiluth. A partir de então foram sucessivas viagens, namoradas e apresentações por todo o Brasil, mais ou menos longas e sempre intercaladas com voltas à Muribeca. Por onde passou, deixou amizades. “Trabalhava como gerente de uma livraria em Fortaleza. Em um recital, ele apareceu. Fiquei muito impressionada”, conta a escritora Socorro Acioli, que o ajudou a reeditar o livro Ilusão de ética, em 1998. Em Fortaleza, Miró fez propaganda política, vendia seus livros e ajudava a namorada (com quem morava à época na capital cearense) a vender artesanato. “A convivência com ele era muito engraçada. O único problema que tivemos foi que na livraria havia uma garrafa de licor para os clientes, e ele bebia tudo quando chegava lá”, diz Acioli. Miró começou a beber aos 21 anos. Conta que foi para comemorar a vitória do Sport Club do Recife em um campeonato. Depois muda: fala que foi em uma festa de aniversário. Quando virou alcoolismo, não se sabe. “Difícil determinar isso. Porque isso é uma visão meio clínica que a gente não tem. Porque quando você bebe, ficar bêbado é uma coisa que faz parte do jogo”, pondera Flavão. Ele pontua que a questão com o álcool é anterior à morte da mãe. “Acho que para as pessoas entenderem (a doença), elas precisam colocar a culpa na morte da mãe. Isso é simplificar. Não foi isso. Claro que o falecimento da mãe e ter ficado sozinho em Muribeca foram fatores depressivos. Ele ficou morando sozinho em um prédio sem outros moradores”. O poeta se mudou de Muribeca para o Largo de Santa Cruz no ano passado, após sair do hospital. Em 2012, a mãe, com saúde perfeita, disse ao filho que queria voltar para a cidade natal, São Bento do Una (Agreste). Foram. Três meses depois, ela teve um AVC e morreu. “Era uma mulher espiritualizada. Talvez soubesse, não sei”, opina Cida Pedrosa. Em 2014, Pedrosa fez a curadoria de um festival literário em São Bento e chamou Miró para participar. “Ele aceitou, disse que seria bom para fazer a catarse. Mas acho que não fez bem. Ele deitou e rolou no chão. Acho que foi muito forte”, diz. aDeus, o livro mais recente, é permeado por um tom existencial influenciado pela solidão de morar no Centro e pela morte da mãe. Solidão é no caixa eletrônico / esquecer a senha / solidão é planta / sentir falta d’água / ver Muribeca indo embora [...] / as lágrimas caindo / e você com esperança / que a chuva molhe o chão. Mostra, também, uma procura às avessas por Deus (já presentes em obras anteriores)como em: no príncipio / não havia nada / hoje também. E ainda: umas folhas verdes / nasceram entre dois prédios / Deus insiste / para que eu acredite nele. QUARTA SEMANA Em fuga da chuva, não conversamos muito e seguimos rápido para o carro. Vamos para um ensaio fotográfico na praia e no centro do Recife, próximo ao Mercado de São José. “Tanto tempo que não ando por aqui”, diz Miró, sóbrio. Dias antes, sentiu-se mal mais uma vez, com febre. Foi melhor assim: conseguiu passar dois dias sem beber. Foi para casa de uma amiga e lá decidiu resolver algumas pendências para visitar, no mesmo dia, uma clínica de reabilitação. “Um amigo meu conseguiu uma vaga na clínica do pai dele”, conta. Seguimos. Ele lembra quando, pequeno, ia com a mãe comprar mantimentos no Mercado. “Ela tinha uma barraca onde vendia bebidas e petiscos, ainda na Quadra Revoredo. Depois que saímos de lá, ela virou lavadeira em um hospital.” Posa para as fotos. Perto, um cavalo urina com tranquilidade. Na frente do poeta, freiras fecham os portões da igreja de São José de Ribamar. “E ainda dizem que é a casa de Deus”, comenta o poeta. Encontra uma amiga que não vê há muito tempo, “desde os anos 1980”. Miró faz gestos para a câmera enquanto as pessoas passam. Desinibido, como ao falar da própria história. Sem reservas, não é avaro de si, das histórias que viveu. Na praia, tira a camisa. Fica com o colar de contas rosas, que afirma ter as energias da orixá Nanã. “É a minha marca, não vou tirar”. O nublado dá um ar estranho às imagens, algo quase fora do tempo. Junho, às vezes, tem tardes de maio. “Tenho amigos que gostam de mim. Preciso me cuidar. Se eu morrer, é bom porque eu vou embora. Mas se eu tiver um AVC, quem vai cuidar de mim?”, indaga ele, em meio a explicações sobre sua opção pelo tratamento. Se estamos todos à deriva (não que notemos isso), cada um se salva como pode. Alguns, como Miró, se permitem salvar os outros com suas poesias, lançando luz sobre os escuros das ruas e das casas, cidades e privacidades. Possíveis traduções para esse impacto que a poesia dele causa no leitor: “A poesia ensina a cair” (Luiza Neto Jorge); “A poesia não salva o mundo, mas salva o minuto” (Matilde Campilho). Não que redima a dimensão prática da vida, mesmo a de Miró. É preciso agir. Mais tarde, naquele dia, fico sabendo que ele chegou à clínica de reabilitação para conhecê-la e por lá ficou. Os poemas que ilustram estas páginas estão no livro inédito do escritor, que será lançado em agosto, pela Mariposa Cartonera.

Nenhum comentário: