O Grupo Clariô foi o mais premiado pela Cooperativa Paulista de Teatro em 2008. Venceu em três categorias: ocupação de espaço, companhia revelação, e trabalho apresentado fora da Capital.
Mulheres-bomba, separadas pelos maridos, pais, amantes e pela ideologia perversa de um Estado injusto, predador, excludente... Mulheres exploradas, por homens e pregadores de todos os matizes fundamentalistas. Mulheres próximas, e a um triz, do motim. Essas mulheres Marcelino-freireanas são deslumbrantes. São mulheres em cujos textos, algumas vezes, referenciados no chão nordestino, estendem esse território para além das “Boas Viagens pernambucanas”: percorrendo toda a extensão atlântica do país, rumo ao seu interior também. As atrizes-criadoras representam o mais belo dos excelentes achados da obra. O coro feminino que fala do fogo no barraco de Dona Preta é inesquecível. Apesar de haver uma grande coesão e harmonia nesse coletivo feminino, não se pode deixar de destacar: a lindíssima cena de Naloana Lima: a mãe que faz e vende seus filhos, a mãe que troca seu leite por eletrodomésticos; a cena de entrada de uma moradora de rua, e emocionante Totonha, que conta histórias e serve um café celebrante de vida: criadas por Martinha Soares; e (gente, o que é isso!): Naruna Costa: impecável como catadora de lixo e emocionante como a mãe anti-paz, cujo filho foi morto pela polícia. A atriz, não bastasse isso, termina o espetáculo, de modo deslumbrante, cantando à capela: Béraderô, de Chico Cesar.
A trilha sonora, composta a partir de certo sincretismo tem momentos antológicos cantados pelas atrizes, sobretudo o canto de entrada “na terreira do mulheril” e na cena em que a “prestadora de serviços” e a Crente discutem nos palcos superiores.
A criação da cenografia, assim como os cortiços de tantas casas do Brasil, parece – do mesmo modo que os barracos das favelas e as casas em palafita – desafiar as leis da gravidade. O cenário é construído com restos de caixas de madeira, por pregos tortos, por material em processo de esboroamento. A cenografização da velha casa da Rua Santa Luzia, cria uma narrativa (im)pressionante e o quarto de Dona Totonha representa um retorno ao quarto das avós de nossas avós, de nossas avós... Quanto mimo barroco em estado de delicadeza.
Por último, quando vi o nome de Will Damas no folheto-cartaz fiquei muito feliz. Trata-se de um guerreiro da mais digna santidade e a quem nós todos, que acreditamos em teatro bem feito e espalhado pela periferia do mundo, tanto devemos. Em alguns dos bons achados do espetáculo é possível ver a mão firmemente sensível desse-tal-maravilhoso-Will.
Alguns dos espetáculos citados no começo desta leitura crítica fazem parte das grandes obras que tive o privilégio de ver montadas neste ano de 2008. Hospital da gente insere-se também neste universo. O espetáculo, além de bela obra teatral, pressupõe uma significativa troca de experiência, fundamentada em exercício mnemônico (ligado à memória): nós todos temos ou tivemos mãe, irmã, amiga... O espetáculo propõe uma sofisticada e vertical vivência estética. Quando se topa com uma obra dessa grandeza, citando tantos poetas e revolucionários: é possível sonhar com os pés plantados no alhures!
(Alexandre Mate, doutor em História Social pela USP, professor e pesquisador de teatro)
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