sábado, 5 de setembro de 2009

Cruz

Eram três. Suas faces denotavam sofrimento incomum. Com um enorme tronco sobre os ombros e amarrados aos pulsos, os jogavam de um lado ao outro da trilha. Era noite ainda, estava para amanhecer. Poucos acompanhavam. Familiares talvez, alguns mendigos, mas... um pouco atrás, homens de uma estirpe diferenciada, montados sobre jegues ricamente enfeitados, ladeavam esse caminhar lento e dolorido. Alguns soldados as vezes usavam a chibata, muito mais como zombaria do que como tortura, pois os três já estavam bastante machucados. Um dos soldados pergunta ao companheiro:
- Porque ele usa aquela coroa de espinhos?
- Não sei direito, não. Mas parece que ele se proclamava rei.
Os dois riem muito e comentam com os outros. Um deles parece não achar divertido e com ar de responsabilidade pergunta:
- E os cravos? Levaram os cravos?
- Claro que sim. Estão todos lá.
- Ótimo.
No monte alguns já esperavam. Era comum quando ia haver mortes. Era sempre ali. Sempre do mesmo jeito. Troncos fincados ao chão em forma de " x ". As mãos e os pés pregados com cravos de ferro de grande tamanho, os membros estirados até causar fraturas, eram deixados até que suas forças os abandonassem e só aí, era permitido às famílias do sacrificados que os retirassem e os enterrassem. Uma cigana, aguardando a chegada dos réus daquela manhã, parecia muito triste com o fato. Aproximando-se de um dos buracos onde eram colocados os troncos, contou quatro cravos para cada um. Olhou para trás, e o pequeno grupo com os condenados começavam a subir a trilha que os levaria à morte. Olhou como quem olha sabendo do que estava para acontecer. Olhava nervosa para os três que subiam e olhava para os cravos. As vezes tapava os ouvidos com as mãos, e voltava a olhar os cravos. Os soldados que já aguardavam no monte aproximaram-se da beira do monte, todos os outros que lá estavam também, pois já se ouvia o lamento dos que naquela manhã seriam pregados aos troncos. A cigana afastou-se e percebeu que todos olhavam para baixo. Olhou para os buracos do centro e para os cravos que estavam dispostos ali. Sorrateiramente aproximou-se e escondeu um dos cravos sob as roupas. Com lágrimas nos olhos, misturou-se aos outros e começou a descer disfarçadamente. Cruzou com o féretro que subia. Olhou fundo nos olhos do primeiro, o que tinha em sua fronte uma coroa de espinhos. Ele também a olhou. Ela apertando o cravo entre suas roupas deixou escorrer suas lágrimas. Ele, ao contrário, apesar de toda a dor que estava sentindo, sorriu. Sorriu como se agradecesse, como se entendesse.
Logo ouvia-se as primeiras batidas e os gritos dos que estavam para morrer sendo pregados aos troncos. Muitos dos que assistiam também gritavam e choravam.
- Onde está o cravo? Gritava um dos soldados que estava incumbido de pregar o que estava no meio.
- Onde está o cravo? Repetia.
- Não sei. - Dizia outro. - Estavam todos aqui! Nós os trouxemos com os outros troncos ontem à noite. Não sei o que pode ter acontecido.
O soldado que gritava aproxima-se do condenado do meio, que já pregado pelas mãos e único com a face em sangue pela coroa de espinhos enterrada em sua cabeça, agarra-o pela barba e irônicamente balbucia baixo:
- Um sofrimento a menos, não é rei? Pois então vou pregá-lo com os pés juntos, judeu! Juntos, entendeu?
Lá embaixo, no pé do monte, para onde a cigana se dirigiu, ela tira o cravo do meio das roupas, ajoelha-se, cava um buraco raso no chão e enterra-o. Ao cobrir-lhe, espanta-se ao ver brotar da terra um líquido avermelhado. Toca-o. Sua face avermelha-se, sente seu corpo esquentar como uma febre súbita. Olha para cima, para o monte e vê levantarem dois condenados em troncos que formam um " x ". E o do meio em cruz. Sente-se quente como num sol de meio-dia, embora estivesse sobre a fria névoa da manhã. A cigana é uma ladra. Ajoelha-se e ora.

Nenhum comentário: